RASP Daniel Lima – entrevista com Shirley da Silva Higa Nascimento e Jayme Garcia dos Santos.

Transcrição de entrevista realizada por Luiza Mello, coordenadora da RASP, em 14 de dezembro de 2020, via Teams, com Shirley da Silva Higa Nascimento, Assistente Judiciário e Jayme Garcia dos Santos, juiz da Segunda Vara de Infância e Juventude de São Paulo, órgão que recebeu a residência do artista Daniel Lima.

 

Luiza Mello: Quais são os desafios em trabalhar com arte em um ambiente tão fechado como o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo?

Jayme Garcia dos Santos: O maior desafio, eu penso, é esse que você já colocou na pergunta. O Judiciário é um ambiente muito fechado, muito complexo e de difícil compreensão pelas pessoas justamente porque não há esse diálogo entre os integrantes do Poder Judiciário e o nosso público-alvo. Nós não dialogamos. Muitas vezes, não dialogamos e não perguntamos qual a importância e qual o real objetivo da nossa atividade.  É diferente de quando você vai ao médico, o médico explica. Estou traçando esse paralelo porque acho que ele é pertinente. Ele procura demonstrar para a pessoa que o procura qual o objetivo da atuação dele. No poder judiciário a gente entrega o pacote pronto. A pessoa chega lá muitas vezes e não entende o porquê, não entende a ritualística, não entende em que fase do processo ela está, o que vai acontecer na sequência. E o juiz não procura auxiliar a pessoa. Veja que eu não estou colocando nem o termo técnico parte. Estou colocando pessoa, porque eu prefiro encarar dessa maneira. É o ser humano e não a parte litigante. Porque a gente também foi criado nessa cultura do litígio. Nossas faculdades nos formam para a cultura do litígio. Elas não nos formam para a cultura do consenso, da congregação. E o juiz, por conta disso, não se importa em explicar para pessoa qual o objetivo da função dele, o que que ele quer atingir e a razão pela qual essa pessoa ingressou, fez uma imersão nesse contexto todo do Poder Judiciário.

Dá para falar isso em relação aos funcionários também. Os nossos funcionários, depois que são aprovados no concurso, ingressam naquele ambiente, que é um ambiente absolutamente novo como qualquer trabalho é, mas sem nenhuma formação prévia e sem nenhuma orientação prévia do que eles vão encontrar, do que eles vão enfrentar. E muitas vezes eles não encontram isso também da parte do superior hierárquico deles, que é o juiz. Eu não tenho essa visão patrimonialista. Eu nunca falei: “ah meu cartório, meus funcionários”, porque eles não são meus. Eles são do Poder Público. Então eu nunca me referi a meu cartório, meus funcionários… eu sempre me referi ao cartório da Vara tal, aos funcionários da Vara tal.  E os juízes têm atrelado, em algumas estruturas de organização judiciária, a atividade dele, um cartório e tem atrelados funcionários e ele é o superior hierárquico desses funcionários, na medida em que ele tem o Poder Correicional sobre esses funcionários. O Poder Correicional não se resume apenas a eventual apuração de faltas que esses funcionários cometeram no exercício de suas funções, mas, principalmente, no aspecto da orientação: por que que o funcionário está lá, porque ele realiza aquela tarefa e qual o objetivo que ele quer alcançar realizando aquela tarefa. E a maioria dos juízes não faz isso. Então os funcionários, às vezes, passam 30 anos no serviço público realizando tarefas, mas sem a real perspectiva da dimensão daquele trabalho que ele está fazendo. E acaba virando uma atividade burocrática, repetitiva, uma atividade que eu costumo chamar de atividade tarefeira bruta. E com isso a gente desperdiça talento, nós ignoramos a vocação das pessoas. Muitas vezes uma vocação transformadora pode nos trazer novas ideias para que a gente dinamize a nossa rotina de trabalho.

Entrando um pouco na outra parte, acho que subverti a ordem de resposta. Eu sempre vi a arte, em qualquer das suas formas de manifestação, como essa ferramenta que pode me ajudar a descobrir a vocação das pessoas que trabalham comigo. A arte como ferramenta que pode me ajudar a desempenhar bem a minha função no sentido de tentar orientar essas pessoas sobre o significado da tarefa que elas estão realizando lá, em primeiro lugar, e em segundo, a importância da realização dessa tarefa. E agregar essas pessoas, formar comigo um time mostrando que, se há uma superioridade hierárquica é por mera formalidade. Mas que todos nós trabalhamos juntos em prol do objetivo maior que é conseguir uma sociedade mais humana, uma sociedade mais fraterna. Veja que não digo nem justa porque esse conceito de justiça é um pouco… Mas uma sociedade mais humana, uma sociedade mais fraterna, uma sociedade de igualdade em que os valores possam ser exercidos de maneira igualitária por todos nós. E a arte ajuda nisso, pelo menos sempre me ajudou. Principalmente a agregar e a conseguir que todos trabalhem não só comigo, mas trabalhem em conjunto entre si também.

Eu sempre brinquei que eu queria ter um Lennon e um McCartney na minha vida. Ou um Mick Jones e um Joe Strummer, queria ter ou um Mick Jagger e um Keith Richards. Porque as grandes bandas, os grandes músicos, sempre trabalharam em conjunto. Acho que a Dona Shirley é um pouco o Paul McCartney do meu John Lennon.

Eu me refiro sempre a Dona Shirley porque é a pessoa que trabalha há mais tempo comigo. Mas a gente sempre conversou muito, sempre usou essa linguagem da arte para conseguir soluções criativas. Eu sempre ouvi as sugestões da Dona Shirley e vice-versa. Ela sempre ouviu as minhas, e agora com seu Edson, que é uma pessoa que vocês conheceram, que está lá na Segunda Vara com a Dona Andreia e com toda equipe do gabinete. A partir desse consenso, desse diálogo e dessa troca de ideias, nós sempre conseguimos construir soluções criativas e soluções de aprimoramento para o nosso serviço.

 

Luiza Mello: O que o senhor está falando tem muito a ver com o propósito da Residência, de afetar os servidores de alguma forma. O artista tem a liberdade de chegar em uma instituição e propor coisas que não fazem parte das regras daquele lugar.

Jayme Garcia dos Santos: Isso é interessante e eu ia complementar a minha resposta no seguinte sentido: a importância da arte no setor público é porque a arte agrega dois aspectos que são não exatamente ignorados no setor público, mas que não existem com a dimensão que a gente precisa como ser humano. A gente não pode esquecer que nós funcionários públicos somos humanos também. E todo ser humano gosta – eu acredito muito nisso – de criatividade e beleza. E a gente não vê isso no setor público.

O setor público é sempre aquele ambiente árido, tensionado, triste. Claro, um fórum tem que ser um lugar sóbrio, mas sobriedade não é sinônimo de falta de beleza, de aridez. E os ambientes dos fóruns são muito áridos. Eu costumo também dizer que a gente não precisa ser sisudo para ser sério. E o lugar não precisa ser árido para ser sóbrio. Então a beleza falta muito. E a arte traz isso. Traz beleza. E a beleza distensiona os ambientes. A gente vive em ambientes tensionados, nós do serviço público e especificamente do poder judiciário. E a nossa criatividade é tolhida. Em que sentido? E aí não é crítica aos órgãos de direção. Geralmente as soluções pra nós que aplicamos na prática essa metodologia que nos é dada, vêm top to down. E quando procuramos subverter – no bom sentido, e dentro da lei, dentro dos atos normativos – essas soluções que vêm de cima para baixo, muitas vezes somos questionados. E, às vezes, em algumas oportunidades, essa subversão pode até melhorar a proposta que veio. Mas nós somos, muitas vezes, tolhidos, na nossa criatividade. E isso vai fazendo com que nós deixemos de procurar novas soluções. Deixemos de ter essa liberdade criativa que poderia auxiliar na melhoria do desempenho da nossa função e nos acomodamos nessa zona de conforto que é colocada pra nós e que muitas vezes não é a melhor. Daí a nossa felicidade em receber a iniciativa da Residência Artística no Setor Público porque durante um período nós pudemos exercitar a nossa criatividade. Não propondo soluções, claro, porque não cabe a nós no nosso microcosmos, mas, pelo menos, pensando nelas. E isso é muito importante. E a arte traz isso, ela traz a criatividade, muito associada a liberdade e ela traz a beleza que nos falta diariamente. Não aquela beleza fútil, aquela beleza simplesmente ornamental, mas aquela beleza que enriquece a nossa alma. O ser humano gosta dela.

 

Luiza Mello:  Uma das artistas da Residência é a Tatiana Altberg, fotógrafa que atuua há muitos anos com jovens da Favela da Maré em um projeto de fotografia pinhole. Na RASP, ela trabalhou com a Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Foi super difícil no início, mas ela fez um trabalho lindo com trinta servidores. Uma das ações foi reformar a sala de convivência da equipe, que existia, mas ninguém usava. A sala era toda marrom, feia. A primeira coisa que ela fez foi pintar a sala e, em seguida, começou a fazer proposições para os servidores: toda semana ela propunha algo como descrever uma imagem, uma cena marcante, etc. Eles respondiam sem se identificar e colocavam as respostas em uma urna. Ela foi colocando essas respostas nas paredes da sala e as pessoas começaram a se interessar pelo que as outras escreviam ou fotografavam. A sala ficou preenchida com cores e memórias dos próprios servidores e passou a ser um lugar bonito e agradável. Essa ação mudou muito a dinâmica da equipe.

Dr Jayme: A nossa atividade em si já é muito tensionada. Se você trabalha com algo que já tenciona, em um ambiente mais tenso ainda, ninguém suporta. Daí a importância da arte em qualquer forma de manifestação para nós do Poder Judiciário e para o nosso público-alvo também. A pessoa não pode chegar no Fórum e pensar que foi, sei lá, para um passeio no parque. Mas ela também não precisa ser oprimida pelo  ambiente, pela arquitetura, pelo design do local. Bem ou mal – e ainda mais a nossa competência – quer queira, quer não, ela já está oprimida. O motivo pelo qual ela está lá é uma forma de opressão do Estado. E o Estado está exercendo lá o seu poder de força, inclusive privando a pessoa de liberdade. Ela já está oprimida. Você vai oprimir mais ainda? Então, nesses aspectos arquitetônicos, de design, a gente não vai aguentar, vai chegar uma hora que não vai aguentar.

É por isso que tantas pessoas adoecem, que tem tanta licença. A Dona Shirley pode falar até melhor que eu, tem licença de servidores, licença de juízes, etc.

 

Luiza Mello: Quais foram os desafios da realização da Residência do Daniel Lima na 2ª Vara Especial da Infância e da Juventude?

Shirley da Silva Nascimento: Foi um desafio para gente. Ainda mais na área da infância. Como o Doutor falou a gente já trabalha com vários projetos, mas na área de execução penal. Eu nunca imaginei que numa Vara de Infância, que não fosse de execução, nós conseguiríamos fazer algum projeto. Então foi um desafio mesmo, mas foi bem interessante, bem legal. Com a chegada do Daniel, que é uma pessoa esclarecida, e a equipe dele, entendemos que se as pessoas esclarecidas não sabem como funciona um Tribunal de Justiça, imagine as pessoas que vão precisar dele? Então eu achei que foi desafiador para nós, mas que ao mesmo tempo foi interessantíssimo expormos nosso trabalho. Achei fantásticos os gráficos que ele fez. A gente construiu ali junto. “Não, é assim, não, é assim” foi dando opinião. O estagiário, que é o Weric, foi de extrema importância. Acredito que foi bem desafiador, mas também bem interessante mesmo. Eu achei legal expor a nossa forma de trabalho. Coisas que as pessoas não conhecem. Mesmo as pessoas mais esclarecidas, como Daniel e equipe.

 

Luiza Mello: Eu acompanhei algumas reuniões e foi muito bom ver como o quebra-cabeça da justiça foi se montando, até chegar na cartografia.

Jayme Garcia dos Santos: Eu acho que tem um aspecto interessante também que as pessoas além de não conhecerem o trabalho dos funcionários, elas usam os funcionários como válvula de escape das frustações delas e acabam punindo eles. Vou explicar: o funcionário é o para-raios do juiz. Ninguém reclama com o juiz se não gostou da decisão. Agora, vai no cartório e fala um monte para o funcionário. Como se o funcionário fosse responsável. Estou falando bobagem Dona Shirley?

Shirley da Silva Nascimento: Não, corretíssimo Doutor, não só as partes, as partes eu digo: réu ou deputado ou o menor, mas advogados mesmo, representantes.

Jayme Garcia dos Santos: As pessoas que lidam com o judiciário, usam os funcionários como válvula de escape das suas frustrações. Elas reclamam pro funcionário da demora, reclama pro funcionário da decisão do juiz, reclama pro funcionário do ambiente, reclama pro funcionário do banheiro do fórum, reclama de tudo para o funcionário. O funcionário raramente ouve um “bom dia”, um “boa tarde” ou um “muito obrigado”. “Poxa, você deixa a sua família para vir tratar de problemas dos outros porque ama”. São abnegados, eu sempre falo isso. A pessoa podia escolher trabalhar em outro lugar. Não é que ninguém gosta, eu gosto. A Dona Shirley também. Mas lidar com problema é difícil. Então, se a pessoa se dispõe a isso, para mim ela já é uma abnegada. Mas não encaram a função do servidor público dessa maneira. O servidor público é o inimigo. Ele é aquele que impede a pessoa de conseguir aquilo que ela quer. E na maioria das vezes eles são encarados assim. E as frustrações são descarregadas neles por quê, primeiro, é difícil ter acesso ao juiz e, segundo, porque as pessoas não falam para o juiz. Elas têm medo, têm receio. Eu ouço. Tem muitos que falam para mim. Mas a maioria não procura o juiz, eles vão no funcionário e isso é mais um fator de tensão. E aí a Residência Artística serve também para isso. Para mostrar para o nosso público-alvo qual a real importância do funcionário, a necessidade da valorização deles. Porque enfim eles estão prestando um serviço público e da melhor maneira possível e dentro de todas as limitações que eles têm.

 

Luiza Mello: E como vocês acham que a equipe da 2a Vara reagiu à residência? Como foi para eles? Quais as impressões de vocês sobre a receptividade da equipe ao projeto?

Jayme Garcia dos Santos: Vou deixar para a Dona Shirley começar essa. Porque no primeiro dia a gente teve uma conversa.

Shirley da Silva Nascimento: Foi bem difícil. Porque ninguém ali está acostumado a trabalhar dessa forma. Nós temos uma rotina. E a gente falou: “nossa, com tanto serviço”. Porque é diferente da execução criminal. Nós temos muito serviço, muitas audiências por dia. As reuniões com o Daniel e a equipe eram na sexta-feira. E sexta-feira é o dia que a gente não faz audiência, é o dia que a gente tem para correr atrás das outras coisas, dos processos. Sim, isso acabou sendo uma coisa… como que eu vou dizer? Não sei explicar, mas uma coisa que acabou sendo até um relaxamento para gente. Nós conseguimos falar de outras coisas. Nós conseguimos nos integrar. E teve a participação do menino, do adolescente infrator, o Caio Ladeira.

Eu achei muito interessante a integração. A equipe e os outros funcionários não estavam acostumados a interagir com um adolescente infrator. Não existe ex-adolescente infrator, né? Era um adolescente infrator, que ainda estava em cumprimento de medida. Todo mundo ficou meio assim, mas todo mundo interagiu. Todos os funcionários, o estagiário e o adolescente. Então, acabou sendo bem legal e é aquilo que eu falei no começo. Para equipe também foi gratificante mostrar como é feito o nosso trabalho. E saber que as pessoas vão conhecer o modo como a gente trabalha, que não é simplesmente chegar ali e se sentar na frente do computador. Ah grava, a audiência. Acabou, vou embora. Não. Tem toda uma preparação, tem todo um conhecimento, toda uma dedicação. Então achei que foi bem legal. E que gostamos bastante.

Jayme Garcia dos Santos: Esse aspecto que a Dona Shirley falou é super importante e daí a minha alegria e a minha insistência em receber vocês lá na Segunda Vara. Ela falou o seguinte no dia que começou: “Ai, Doutor, a gente tem tanta coisa pra fazer. Será que vai ser útil?” E eu falava: calma, vai ser útil sim. Vai ser bom. Vocês vão ter contato com outras pessoas. E por quê? Porque o servidor público não tem um tempo de respiro. Tanto que você pode perceber quando a Dona Shirley falou: “poxa, a gente tem tanta coisa pra fazer, e era dia de sexta-feira que a gente não tem audiência e a gente ia aproveitar para fazer processo, cumprir processo e tal”. E não é só isso, né? A gente não pode moer o servidor. O servidor não pode virar óleo para fazer funcionar a máquina do Estado. Não é isso. Então eles têm que ter esse tempo de respiro. E eles têm que ter esse tempo para poder… eles têm que ter uma plateia – plateia no sentido figurado, claro –, mas que possa ouvir sobre a importância do trabalho que  realizam. Eu costumo dizer o seguinte: que os servidores ficam numa realidade invisível que é fundamental para que tudo funcione.

Quando eu recebo novos juízes lá na Vara, recém aprovados no concurso que vão fazer estágio por conta do curso de formação na escola da magistratura. Eu digo para eles o seguinte: olha, vocês têm que conhecer a realidade invisível, o backstage que existe para que vocês possam subir aqui nesse tablado e brilhar como uma estrela de cinema. Como um Brad Pitt. Porque vocês não precisam se preocupar com nada. Vocês vão sentar aqui e se vocês quiserem caneta, vai ter, papel, vai ter. A hora que vocês falarem e começarem a audiência, já vai ter um servidor extremamente preparado para gravar. O único trabalho que vocês vão ter é decidir. Mas vocês podem se dar ao luxo de estar nesse patamar porque atrás de vocês tem toda uma realidade invisível que é construída por eles e que a gente não pode ignorar. Até para que a gente valorize o que a gente faz e, principalmente, valorize que eles fazem. Então é importante eles terem voz e a residência artística deu oportunidade para eles. Por isso eu falava para a Dona Shirley: calma! Vai lá e fala o que a senhora faz. É ou não é, Dona Shirley?

 

Luiza Mello: Todo mundo tem esse medo, Dona Shirley. Leva um tempo para entender o trabalho artístico da Residência. É um desafio enorme para as instituições receberem um artista pois como Dona Shirley falou, os servidores estão sempre muito sobrecarregados. Não têm tempo. Acham que não vão conseguir dar conta daquilo. Para quê a arte? A arte é um negócio que não serve pra nada. E no final, acaba que esse tempo de convivência com o artista proporciona experiências que valem muito a pena. Porque realmente tiram eles do lugar comum, valoriza o trabalho, faz pensar de outro jeito.

Jayme Garcia dos Santos: E você tem um ganho qualitativo imenso, que é ignorado no serviço público. A gente não foca no ganho qualitativo no serviço público. A gente foca só no ganho quantitativo. E a gente tem que ganhar em qualidade em todos os aspectos. E inclusive em qualidade de vida para o servidor. E você tem um ganho qualitativo imenso que é ignorado no serviço público. Isso que a Dona Shirley falou resume bem essa situação, tem que ganhar em qualidade e qualidade em todos os aspectos. Inclusive qualidade de vida para servidor. Por que que ele não pode ter esse tempo? Esse tempo de respiro? Eu costumo usar essa expressão, inclusive para refletir sobre si mesmo, sobre a importância do que ele faz.

E foi o que a Residência Artística oportunizou para eles. Eles saíram daquela roda viva de cumprir tarefa, de fazer o processo andar, acabar com processo. Não que isso não seja importante, é importante, claro. Até porque é um dos princípios que rege a competência da Infância da Juventude é o da celeridade, da brevidade, porque a medida socioeducativa tem que ser atual. Mas a gente não pode buscar esse ganho quantitativo em detrimento do ganho qualitativo. Eles terem esse tempo para refletir, nem que seja por duas horas. O que são duas horas num dia? É importante, mas a gente pode usar para fazer outras coisas.

 

Luiza Mello: A última questão é avaliarmos como a residência impactou a Segunda Vara e as demais. Vocês acham que as outras Varas também foram mexidas de alguma forma? Ficaram sabendo? Teve algum burburinho entre as pessoas que trabalham ali naquele mesmo prédio? Ou foi algo muito focado mesmo na Segunda Vara por conta da estrutura do sistema?

Jayme Garcia dos Santos:  Ficou focado na Segunda Vara e os outros não se interessaram. Eu sou bem sincero e franco.

Shirley da Silva Nascimento: Ficaram curiosos. Como tem vidrinho na porta e o Daniel preparava a sala com cartazes, etc., todo mundo que passava fazia questão de dar uma olhadinha no vidrinho e depois perguntava: “o que está acontecendo?” Mas o pensamento de todo funcionário é aquele que eu falei no início: “nossa, mas com tanto serviço, parar para fazer isso?”.

Jayme Garcia dos Santos: Nunca teve uma demanda para levar para outra unidade. Nem de juiz, nem de funcionário. De chegar e falar: “Nossa como vocês conseguiram? Vai continuar? Vai para outras Varas?” Isso nunca teve.

 

Luiza Mello: A pandemia atrapalhou um pouco. Se o Daniel tivesse conseguido colocar em prática todos os planos que ele tinha, talvez a gente conseguisse ter uma capilaridade maior ou uma curiosidade maior das outras Varas. Mas a pandemia ao mesmo tempo também trouxe soluções interessantes: as ações online, o podcast, a ampliação das entrevistas e conversas sobre o assunto com outros interlocutores.

Para terminar eu queria saber a opinião de vocês sobre o impacto da residência nos servidores considerando que a pandemia impediu a continuidade dos encontros presenciais.

Jayme Garcia dos Santos: Vou voltar um pouquinho para o começo da nossa conversa. O impacto que eu vejo é no resgate da autoestima do servidor. Na possibilidade de proporcionar esse ganho de qualidade de vida no ambiente de trabalho, que é difícil a gente ter. No tocante ao público: eu digo despertar no público a crença e a certeza. Na verdade, mais crença do que certeza de que o servidor está lá, desculpe a redundância, para servi-lo mesmo. E não para prejudicá-lo. O servidor não é um inimigo do público, mas um agente estatal que está lá para cuidar da pessoa. Ainda que a atividade dele implique em um impacto negativo na vida da pessoa, mas a finalidade do servidor e o objetivo da sua atividade é essa. É cuidar da pessoa que bate às portas do judiciário e por algum motivo se vê inserida nesse ambiente do Sistema de Justiça. Acho que esse é o grande desafio da Residência Artística. Essa congregação. Hoje a gente não tem essa congregação de público e servidor. O próprio nome diz. É servidor público e o que você tem é essa cizânia entre o servidor e o público. Você não tem essa congregação.

 

Luiza Mello: Estamos trabalhando para isso, para congregar. É importante refletirmos sempre sobre a Residência, seus desafios, resultados e impactos. O Daniel é o terceiro artista, estamos apenas começando esse jornada e já queremos ampliar o trabalho, colocar mais artistas no setor público. Queremos de alguma forma colaborar com os servidores, pessoas tão importantes para o País e, ao mesmo tempo, inserir e engajar artistas no setor público para promovermos mudanças. Obrigada pela conversa e pelo acolhimento ao projeto.